Será um pensamento metafísico? Uma visão niilista, por demais cética diante desta pandemia avassaladora? Tais interrogações perpassam a mente de Natália às 3 da matina, insone, como só acontecer há 30 anos. Vai ao banheiro, abre o sabonete Alfazema de Provença. Afora a caixa, um plástico reveste o produto. Lava suavemente o rosto, como a querer que o perfume seja um apanágio para suas questões existenciais.
Continua a divagar. Comprara colágeno para seus ossos, já frágeis, e lá veio, embalado em 30 sachês. Passara à tarde no supermercado, e tudo o que levara para casa, vinha com embalagens, que demandam muitos anos para se degradar na natureza. Fita-se no espelho; atropela uma ruga à esquerda e outra, à direita. Massageia-as, como se pudesse amainá-las, sulco a sulco– pequenos, mas sulcos…
Abre a caixa de creme dental, agora de carvão mineral na tentativa de branquear um cadinho os dentes amarelados pelo café, vinho e nicotina. Olha a bisnaga, a caixa de sabonete, a touca descartável, o spray que esconde a raiz branca dos cabelos para estar mais apresentável nas reuniões de trabalho, e pensa: se inventaram até creme de carvão, por que raios não formulam produtos mais sustentáveis ao planeta? E remédios que evitem pragas como a COVID-19, que já mata mais que a Aids, ao invés de investirem fortunas em armamentos bélicos, que tiram vidas, ao invés de salvá-las.
Parece inacreditável, mas também questiona os investimentos astronômicos em viagens espaciais, quando sequer solucionamos problemas prementes como a fome, que mata mais de 8 milhões de crianças por ano; doenças como tuberculose, lepra, disenteria, ebola, que se alastram, sobretudo nos países mais pobres. Sua angústia aumenta. Sente-se uma masoquista por seus pensamentos dolorosos.. Lembra-se do espancamento do negro em um supermercado paulista, de George Floyd, morto por sufocamento pela polícia americana, e vê a intolerância racial também escancarar-se no país multirracial, Brasil. Quanta desigualdade!
Por que não investir em alimentos orgânicos , embalagens sustentáveis, infraestrutura, saúde, educação, de forma a abranger os menos favorecidos, dentro de um sistema equânime? Por que não investir maciçamente em tratamento de esgoto, visto 55% de nossos resíduos serem lançados na natureza, poluindo os lençóis freáticos? Sem contar que apenas 1/3 do planeta tem acesso a esgoto e água tratados? São tantos investimentos que redundariam em melhor qualidade de vida e mitigariam tantos problemas de saúde! Desde que me conheço por gente, o Brasil é um país em desenvolvimento, observa Natália.
Com essa mistura de questionamentos, num hiato de tempo, dirige-se à cozinha e, substitui o ansiolítico e o indutor de sono por uma taça de vinho. Deita-se querendo deixar seu ceticismo de lado e crer que amanhã será outro dia, como diz a canção de Chico Buarque de Holanda. “Estou velha, mas as gerações que advirão terão um planeta mais sustentável e uma sociedade mais justa e menos desigual”, quer crer, para apaniguar a desolação que perpassa sua alma…





















